A romantizaçom da violência machista

Março 17, 2015 | Em destaque, Feminismo, Feminismo e Antipatriarcado

50_sombras_de_grey_977_300x450A seguir, disponibilizamos o artigo da companheira da Mesa Nacional de BRIGA, Helena Sabel, onde analisa em chave marxista e feminista o fenómeno de massas “As 50 sombras de Grey” (publicado originalmente no Abrente 74).

 

A romantizaçom da violência machista (ou como umha relaçom abusiva se converte numha desejável história de amor)

Como marxistas, devemos analisar todo fenómeno de massas com o fim de determinar o seu papel dentro do sistema. Foi criado pola classe dominante, ou reconvertido e potencializado por ela posteriormente? Que ideologia (entendida como “falsa consciência necessária”) fomenta? E mais importante ainda, como podemos aplacá-lo denunciado a sua dimensom alienante?

É por isso que consideramos que, com mais de 100 milhons de exemplares vendidos[1] e com umha adaptaçom cinematográfica que será o blockbuster do ano, o fenómeno de As cinqüenta sombras de Grey merece umhas linhas neste jornal.

A cultura do estupro e o consentimento

A normalizaçom da violência sexual (também chamada “cultura do estupro”, tomando a etiqueta cunhada polo feminismo na década de 70) é umha realidade complexa sem cuja análise nom  podemos perceber as múltiplas dimensons do consentimento. A sociedade ocidental rejeita de maneira coletiva a ideia de a maior parte dos estupros serem cometidos por homens normais, homens que tenhem família e amigos, homens que seguramente figérom na sua vida atos admiráveis ou grandes proezas. Negamo-nos a aceitar que os bons tipos violam e que, além disso, o fam amiúde. Esta nom deixa de ser mais umha batalha ganha polo sistema patriarco-burguês que se beneficia de espalhar a imagem do estuprador psicótico que axeja nos parques e ruelas. O medo funciona assim como um mecanismo de controlo sobre as mulheres, que se acompanha de liçons sobre as roupas que devemos vestir, que atitudes ter, e que horas e lugares som as ajeitadas para estarmos fora da casa.

É dentro deste contexto que toma forma um consentimento cinzento. A ideia de que as mulheres dizemos “nom”, mas que na realidade “sim” o queremos, a noçom de que gostamos de fazer-nos de rogadas, de que a insistência nos parece atrativa. Gera-se, portanto, umha romantizaçom do assédio sexual da qual tanto homens como mulheres somos vítimas.

Há uns anos, o grande bestseller entre a juventude foi Crepúsculo, umha triologia que mantém numerosos parecidos com As Cinqüenta Sombras de Grey. No seu momento, e especialmente após a estreia da versom cinematográfica, saltárom os alarmes pola descriçom da relaçom abusiva do casal em cuja história de amor se centra o enredo. O problema é que a possessividade do personagem masculino para com a sua companheira, os seus ciúmes, o controlo doentio, o assédio… nom som apresentados como abusivos, mas como paradigma “dum amor verdadeiro” que os jovens querem emular e elas experimentar.

Com a introduçom de descriçons explícitas de atos sexuais que servírom de reclamo, As Cinqüenta Sombras de Grey difunde os mesmos daninhos valores do amor burguês, mas deixando a sua pegada num auditório muito mais amplo. Seguramente os dous setores que mais abertamente manifestárom o seu rejeitamento aos conteúdos desta obra fôrom as organizaçons de vítimas da violência machista no lar e os praticantes de bondage, dominaçom-subdominaçom e/ou sadomasoquismo (BDSM).

Sexo e dor podem-se combinar dumha maneira saudável, mas é imprescindível que as pessoas partícipes tenham um nível de autoconhecimento elevado, que podam comunicar abertamente o que desejam e os atos de que nom gostas, e que tenham maturidade emocional. Só se se cumprirem cada um desses fatores poderá ser a experiência gratificante para tod@s. Ao invés, nengum desses elementos está presente na relaçom do casal protagonista de As Cinqüenta Sombras de Grey.

Numha passagem do livro, a personagem feminina é espancada sem que ela manifestasse o seu consentimento. De facto, o que sim transmite às leitoras/es é o seu mal-estar, a sua dor e a sua impotência por nom poder parar esse ato violento, pois o “medo a perdê-lo” paralisa-a. Assim pois o medo, a chantagem emocional e a culpabilizaçom constante a que é submetida a protagonista desta obra fai que, embora chegue a haver um consentimento explícito, este seja cinzento e deva ser contextualizado.

A cultura do estupro em que vivemos obriga-nos a categorizarmos diferentes tipos de consentimento. Existe um consentimento reticente quando o medo às conseqüências de dizer nom é maior do que o medo a dizer sim; quando se di sim esperando que a outra pessoa deixe de incomodar ou se sabe que dizer nom só implicará umha maior insistência para tratar de convencer-nos. Também existe um consentimento coagido quando entra em jogo a ameaça das conseqüências daninhas que terá dizer nom; é o tipo de consentimento em que se aceita fazer algo que nos gera pavor.

As relaçons sexuais etiquetáveis sob o termo BDSM estám fortemente reguladas, sendo o consentimento a mais importante das suas regras. A segurança, a proteçom da integridade física e psicológica d@s participantes, é umha prioridade. Essa dimensom é completamente obviada nesta obra e a difusom dessa má praxe é ainda mais prejudicial, tendo em conta a péssima educaçom sexual que tem a maior parte da populaçom. O BDSM é hoje mainstream entre setores sociais que ignoram como a praticar dum jeito saudável e seguro.

Esta ignoráncia é a que provoca que quando se risca a relaçom entre @s protagonistas como abusiva, a contra-argumentaçom de quem defende a obra gire em torno do BDSM e nom das dinámicas do casal no seu conjunto. Umha reaçom surpreendente considerando que no final da obra o BDSM é praticamente apresentado como umha patologia: o personagem masculino deseja estas práticas sexuais porque foi abusada sendo criança, e só é capaz de as abandonars porque é “salvo” graças à sua paixom “verdadeira” pola protagonista.

O amor burguês

Além do heteronormativismo que se destila durante toda a obra (mesmo se recorre a piadas homofóbicas para “liberar tensom”) a encarnaçom dos roles de género é terrorífica e ajusta-se perfeitamente ao tópico da plebeia que se converte em princesa graças ao Príncipe Azul que a salva dumha vida ordinária.

A assimetria entre @s personagens é abismal, sendo a mulher completamente subsidiária, pois o seu papel é relevante em última instáncia porque dela depende a evoluçom do personagem masculino. A autoconsciência adquirida pola protagonista ao longo da obra limita-se a descobrir que gosta de sexo, mas que nom gosta de ser espancada nem assediada; porém, está disposta a tolerar esses abusos porque o seu objetivo último é que o personagem masculino mostre umha maior afetividade e proximidade emocional com ela. Já comentamos brevemente a evoluçom do protagonista: devido ao abuso infantil sofrido, via no maltrato de mulheres a única via para conseguir satisfaçom sexual/vital, até que a personagem feminina entra em cena e se apaixona por ela: isto provoca umha luita interior cujas batalhas som exteriorizadas através de abusos e manipulaçons contra a personagem feminina. Finalmente, esta luita resolve-se na aceitaçom dumha relaçom monogámica “normal”, paradigma das relaçons afetivo-sexuais que se devem dar no seio da família burguesa.

A ideia de apresentar umha mulher submetida a um homem, convertida num objeto sexual à sua completa disposiçom e que ela tolere ou mesmo defenda esta cousificaçom, nom é umha novidade. Sim é mais novo (e muito mais preocupante) que se interprete essa situaçom como umha manifestaçom de empoderamento da mulher e um exemplo da sua libertaçom sexual. Há umha passagem em que a protagonista age com independência e se enfrenta ao seu maltratador afirmando que nom gosta da vertente violenta dos seus atos sexuais. Sem restar importáncia a esse ato de empoderamento, a resoluçom do conflito nom é pedagógica, mas daninha.

Em lugar de romantizar o protagonista, a saída didática seria a de reconhecer nele as caraterísticas dum maltratador e os sintomas dumha relaçom abusiva. Ele é extremamente ciumento. A sua possessividade é refletida em numerosas ocasions ao longo da obra, sendo muito evidente a cousificaçom que fai da protagonista. Tem numerosos ataques de ira que ventila sobre a personagem feminina, a que mais umha vez é utilizada como sumidouro das suas frustraçons. O seu egoísmo percebe-se numha falta de empatia que lhe impede entender as emoçons da sua companheira: as suas necessidades tenhem que satisfazer-se sem importar que ela sofra. As suas repentinas mudanças de humor também provocam umha instabilidade emocional na jovem, o que ajuda o maltratador a manter o controlo. É nesta necessidade de ter todos os aspetos da vida da protagonista sob o seu controlo (muito além da prática de BDSM) que se percebem as dinámicas mais preocupantes: controla a sua economia e como deve gastar o dinheiro,  controla os seus hábitos alimentícios, controla com quem se relaciona, favorecendo a isolaçom desta. Interfere no seu trabalho e proíbe-lhe a tomada de decisons de maneira independente. Está em contato com ela constantemente: chamadas telefónicas, correios eletrónicos, GPS e mesmo envia guarda-costas para que a persigam em todo o momento (romantizado-o sob a escusa de que é para a sua própria segurança). Além do controlo, utiliza diversas táticas de manipulaçom do protagonista: chantagem emocional, pressom, presentes excessivos nom desejados, utilizaçom de drogas (álcool) para conseguir o consentimento (ou seja, estupro), vitimizaçom dele próprio e culpabilizaçom da companheira, intimidaçom, ameaças… E como nom nos cansaremos de repetir, o mais perigoso é que se transmita que todos esses comportamento som fruto do “amor”.

Alienaçom

É evidente que o sistema conta com numerosas ferramentas de reproduçom ideológica e nom pretendemos colocar um livro como o inimigo mais perigoso a que nos enfrentamos na nossa luita contra a alienaçom. Precisamente, devemos situá-lo num contexto mais amplo, que tem o fenómeno da cultura do estupro e os valores do amor burguês como círculo mais próximo, e cuja análise mais geral nos leva à manutençom da exploraçom, dominaçom e opressom patriarcal. Assim pois, a relaçom abusiva deste casal de ficçom age como ferramenta que normaliza a violência generalizada contra as mulheres, perpetuando umha narrativa social abrangente que nom reconhece a sua vertente machista.

Ainda que o as leitoras/es e espetadoras/es deste fenómeno pertençam a diversas faixas etárias, a sua influência pode ser realmente prejudicial entre as jovens que estám a desenvolver e explorar as suas vidas afetivo-sexuais, pois sem dúvida som mais suscetíveis na hora de desejarem e reproduzirem a problemática visom do amor e do sexo que protagonizam estes produtos culturais tam consumidos como As Cinqüenta Sombras de Grey.

Nom devemos esquecer que os primeiros best-sellers, com umhas conotaçons mui similares às que usamos na atualidade, fôrom os romances de temática amorosa do Romantismo, e que o público a que iam dirigidos eram as mulheres dumha nobreza em decadência e dumha burguesia que ainda precisava do capital simbólico para se converter na classe dominante sem qualquer dúvida. Ainda hoje pagamos as conseqüências que a influência desses produtos literários tivérom na época, com os seus amores interclassistas, a idealizaçom da monogamia, a valorizaçom dumha maternidade opressiva para a mulher e, também, com a romantizaçom de relaçons de codependência e abuso.